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Entre crises e recomeços

A história dos últimos cem anos é marcada por episódios de crises, quebras e recessões, mas também por retomadas e mudanças de comportamentos

03/06/2020

Texto: Silvia Bocchese de Lima

 

Quando o navio Demerara aportou no Brasil – fazendo paradas
nos principais portos
como Recife, Salvador e Rio de
Janeiro – com ele desembarcou
um vírus mortal. Rapidamente a
doença se espalhou pelo país e as
cidades do Rio de Janeiro e São
Paulo foram as mais afetadas. O
Serviço de Profilaxia do Porto, no
Rio de Janeiro, foi alvo de severas
críticas da opinião pública, pois
não conseguia fazer a desinfecção
de todos os navios que aportavam
e porque acreditava que aplicar a
quarentena em embarcações acarretaria
problemas políticos, sociais
e econômicos.

Os moradores evitavam sair de
casa, as fábricas, comércios, oficinas
permaneceram fechados
por falta de proprietários e empregados
sadios e aptos para o
trabalho. Aulas foram suspensas
para evitar a propagação da doença
e a fome manifestou-se em
todo o país. Os preços dos produtos
subiram, começou a faltar
medicamentos nas farmácias e
os remédios tidos como milagrosos,
como o quinino e a aspirina,
eram comercializados a preços
excessivos. O sepultamento dos
mortos também foi um problema
enfrentado, e os veículos da
saúde pública não conseguiam
atender a todos os chamados para
recolher os corpos. “Os armazéns
fecham-se, os açougues fecham-se,
falta o leite de que se alimentam as
creanças e os enfermos – e a gente
procura debalde uma proteccção
superior, que evite o desastre fatal
(…). Soffresse a população da
capital da Republica, espalhasse
o morbus – que parece não ser de
simples gripe – ao paiz inteiro. (…) Com o facto de se conservarem
abertos os cinemas na cidade, tem
havido a exploração de que os seus
proprietários escarnecem desta situação
dolorosa”: o jornal Correio
da Manhã, do Rio de Janeiro trazia
um cenário que poderia ser contemporâneo,
mas apresentava um
relato do Brasil de 1918, assolado
pela Gripe Espanhola. Os números
de mortos pela pandemia não
são exatos, mas estima-se que em
todo o mundo tenham sido mais
de 50 milhões de pessoas e, no Brasil, 35 mil óbitos.

Uma das salas da Cruz Vermelha Brasileira onde foram recolhidos inúmeros enfermos. Registro publicado no Semanário Fon Fon. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Nacional

 

A GRIPE ESPANHOLA NO PARANÁ

Foi por Paranaguá que a gripe
chegou ao Paraná. A cidade recebeu
convidados, vindos do Rio
de Janeiro, para um casamento
e, alguns deles, estavam contaminados
com o vírus. A partir daí, a doença se espalhou pelo estado.

Para tentar frear a disseminação
do vírus, algumas medidas foram
tomadas, como a fiscalização da
estrada de ferro que liga Curitiba
a Paranaguá e a desinfecção de bagagens.

A Diretoria Geral do Serviço Sanitário
de Curitiba, presidida pelo médico Trajano Reis, publicou, no
jornal A República, orientações e
determinações quanto à pandemia,
entre elas, o pedido para que as pessoas
evitassem visitas, que clínicos
notificassem os casos suspeitos para
que as providências pudessem ser tomadas, que os enterros de acometidos pela doença fossem feitos sem acompanhamento, que cocheiros não transportassem doentes e que as igrejas permanecessem fechadas.

Com uma população de pouco mais de 73 mil pessoas, Curitiba teve, segundo Zulmara Clara Sauner Posse e  Elizabeth Amorim de Castro, em As virtudes do bem-morar,
mais de 60% da população contaminada. “Em 1918, no período de 14 de outubro a 14 de dezembro, a epidemia da gripe espanhola, ou ‘influenza’, assolou a capital do Paraná, contaminando 45.249 pessoas e matando 384.”

1ª GUERRA MUNDIAL

O fim da Grande Guerra Mundial ocorreu concomitantemente à pandemia da Gripe Espanhola. O
conflito que era para ser de rápida
duração, conforme previam tanto a
Tríplice Entente quanto a Tríplice
Aliança, durou quatro anos e mais
de nove milhões de soldados foram
abatidos em campos e trincheiras.

A mútua antipatia entre Alemanha
e França e Rússia e Áustria-Hungria foi o estopim para detonar
o conflito, em julho de 1914,
que logo se tornou uma guerra europeia
e, com o correr do tempo,
mundial. O Brasil entrou no conflito,
já perto do seu fim, enviando
uma missão médica à Europa.
Inclusive montando um hospital
em terras francesas.

Com o fim das batalhas, a aliança
liderada por França e Inglaterra
foi declarada vitoriosa, mas foram
inúmeros os prejuízos econômicos
e sociais. A Europa, considerada
símbolo de prosperidade, estava
endividada, houve desvalorização
das moedas, o parque industrial
foi reduzido pela metade e houve
queda de mais de 30% no potencial
agrícola.

Uma das principais alterações
no cenário internacional foi a
alavancada da economia norte-americana, que se tornou a grande potência mundial, com o fortalecimento
da indústria nacional,
exportações triplicadas e aumento
de renda.

No Brasil, as exportações de café
caíram consideravelmente, mas
as da borracha – apesar de sofrerem
a concorrência do Oriente
–, aumentaram no período bélico.
Impossibilitado de importar
durante o conflito, o país passou
por um processo de industrialização
interna.

GRANDE DEPRESSÃO

Depois da 1ª Guerra Mundial, a
economia de todo o globo lutava
para recuperar os estragos causados
pelo conflito. Nos Estados
Unidos, com a produção em massa,
havia emprego, grande produção
na agricultura, consumo
interno em alta e expansão do crédito.
José Jobson de Arruda, em
História Moderna e Contemporânea,
revela que “as reservas de ouro
acumuladas nos bancos norte-americanos
superavam as de todos
os outros países do mundo. Nenhum
outro país alcançara antes
tamanha supremacia financeira”.

Com os volumosos empréstimos
norte-americanos aos países europeus,
a Europa começou a dar
sinais de recuperação. “O crescimento
econômico dos Estados
Unidos veio acompanhado por
um estado de extrema euforia social,
o que dificultava uma visão
crítica dos perigos que esse crescimento
desordenado poderia causar.
A crise de 1929 foi causada,
sobretudo, pela insistência norte-americana em manter depois da
guerra o mesmo ritmo de produção
alcançado durante ela”, destaca
Arruda.

Com os crescentes estoques de
produtos agrícolas, houve a redução
dos preços das commodities,
falência de fazendeiros, excesso da
produção industrial, desemprego
e consumo em baixa, com tudo se
refletindo na Bolsa de Valores de
Nova Iorque. Arruda explica que
“para evitar a crise total, e pretendendo
aproveitar-se da baixa geral,
um grupo de banqueiros de Nova
Iorque comprou uma imensa quantidade
de ações, das mais variadas
companhias, a preços muito baixos,
pretendendo vendê-las a preços altos.
Quando lançaram as ações no
mercado, elas não valiam nada”. O
resultado dessa atitude foi falência
coletiva, desemprego em todo o país
e os reflexos da crise foram sentidos
em todo o mundo.

No Brasil, o café – que representava
mais de 70% das exportações
– não era mais comprado pelo
mercado externo e os preços do
produto despencaram. A medida
tomada pelo governo brasileiro,
para conter a desvalorização do
café, foi a compra e a queima de
toneladas do produto. “A indústria
foi de certa forma beneficiada,
pois capitais anteriormente
investidos no café passaram a ser
aplicados na indústria. Com a desvalorização
da moeda brasileira e
a consequente elevação dos preços
dos produtos estrangeiros, houve
um estímulo para a fabricação
de produtos similares no Brasil”,
conta Arruda.

Para restaurar a economia, o presidente
norte-americano Franklin
Delano Roosevelt criou o plano
chamado New Deal, que, entre
tantas medidas, estimulou o aumento
do poder aquisitivo dos
assalariados, ampliou o mercado
interno, limitou a produção de
commodities para controlar o preço
e ocupou a mão de obra – que
estava desempregada – em obras
públicas.

2ª GUERRA MUNDIAL

As rusgas criadas pela 1ª Guerra
Mundial não foram extintas
após o término do conflito. O
período entre guerras foi marcado
pelo sentimento de revanche,
pela implantação do fascismo na
Itália – por Mussolini –, e pelo conflito armado que se estendeu
por toda a Espanha. A Alemanha,
que enfrentava graves dificuldades
econômicas e fome, viu Hitler se
tornar extremamente popular e
publicar o livro Mein Kampf, com
ideias de extrema direita e antissemitas,
defendendo a superioridade
do povo alemão, e um nacionalismo
extremado.

 

A cúpula do edifício permaneceu intacta após o bombardeio atômico em Hiroshima. Hoje o local recebe o nome de Memorial da Paz de Hiroshima

 

Hitler toma o poder na Alemanha
no início dos anos 30. Quando as
forças alemãs invadem a Polônia,
em setembro de 1939, materializou-
-se o gatilho para que Inglaterra e
França declarassem guerra à Alemanha
– era o começo da 2ª Guerra
Mundial, a mais destrutiva da história,
estendendo-se até 1945.

Resumidamente, dezenas de países
foram envolvidos, 100 milhões
de homens lutaram, 37,6 milhões
morreram, milhões de judeus foram
mortos em campos de concentração,
Hiroshima e Nagasaki
foram arrasadas com bombardeios
atômicos. Itália, Japão e Alemanha,
os principais países do Eixo
foram rendidos pelos Aliados, encabeçados
por França, Grã-Bretanha
e Estados Unidos.

Portão principal do campo de concentração de Aushwitz, na Polônia, onde 1,1 milhão de pessoas foram mortas pelo exército nazista durante a 2ª Guerra Mundial

 

O resultado do conflito foi a divisão
do mundo em socialismo e capitalismo,
a hegemonia da economia
norte-americana, a criação da
Organização das Nações Unidas
(ONU) e o Plano Marshall para
reconstrução dos países aliados
da Europa. Para sua recuperação
econômica, a França elaborou o
Plano Monnet.

O Brasil, que havia entrado no
conflito ao lado dos Aliados e participado
da guerra na reconquista
da Itália, viu o término do governo
Vargas, o avanço na indústria,
instalação de siderúrgicas, a restrição às importações e o desenvolvimento
nacional.

Ao telefone dos avisos, Celestino Fornari, durante a 2ª Guerra Mundial, na Itália, Fornari era um dos soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que atuou no I Grupo de Infantaria quando da tomada de Monte Castelo. Arquivo Familiar/Neri França Fornari Bocchese

Em 1945, o setor produtivo brasileiro,
composto por representantes
das áreas do comércio, da
agricultura e da indústria, assinou
a Carta da Paz Social, um marco
nas práticas de assistência social e
de qualificação dos trabalhadores,
nascendo assim, o Sistema S.

CRISE FINANCEIRA GLOBAL

Em 2008, o mundo viu-se frente
a uma crise financeira de dimensões
globais, que teve início com o
mercado de hipotecas dos Estados
Unidos. O que originou a crise foi
a oferta de crédito a juros baixos
que fez com que muitas pessoas financiassem
a compra de imóveis.

Com a demanda em alta, o preço dos imóveis subiu e os compradores
investiam valores muito acima
do que os imóveis valiam, acreditando
que a valorização imobiliária
viria. Criou-se a chamada Bolha
Imobiliária.

Os bancos aumentaram a taxa de
juros e quem fez empréstimos não
conseguia pagar as parcelas, que
subiram consideravelmente. A
inadimplência disparou, as dívidas
com hipotecas chegaram a US$ 12
trilhões, bancos e instituições financeiras
faliram e, com a interconexão
dos mercados financeiros, a
crise tornou-se global. Desemprego
em massa, queda do preço das
commodities, bolsas de valores de
todo o mundo foram afetadas. A
saída foi a política de estímulos que
o presidente Barack Obama aplicou
nos Estados Unidos.

No Brasil, houve queda das ações,
desvalorização do Real frente ao
Dólar, diminuição da oferta de
crédito e a redução dos investimentos
internacionais.

Até a atual pandemia, a quebradeira
de 2008 era considerada a
pior crise econômica depois da
Depressão de 1929.

O NOVO CORONAVÍRUS

Em dezembro de 2019, foi
identificada na China, na
cidade de Wuhan, uma
doença respiratória aguda,
causada por um vírus com
alto poder de contágio, a
COVID-19. Da China,
o vírus se espalhou pelo
mundo e a Organização
Mundial da Saúde (OMS)
classificou a situação, em
março deste ano, como
pandemia. Na segunda
quinzena de abril, havia
registros de mais de 2,7
milhões de casos da doença em 210
países, e mais de 190 mil mortes. No Brasil, foram confirmados 49 mil
casos e 3.313 mortes.

A doença segue sem possuir vacina
e gerando muitas dúvidas. O
remédio adotado em todo o mundo
tem sido o isolamento social,
o que tem acarretado instabilidade
social e econômica. Houve um
crescimento na disseminação de
fake news – as chamadas notícias
falsas – de todos os gêneros, e,
assim como na Gripe Espanhola,
corrida às compras em supermercados,
esgotamento de medicamentos
que supostamente trariam
a cura da doença, uso de máscaras de pano, retomada e severidade
nos hábitos de higiene, fechamento
de escolas e empresas.

No último relatório apresentado
pelo Fundo Monetário Internacional
(FMI), em abril, fala-se que
o mundo vive uma crise sem precedentes,
cujo resultado será pior
do que o registrado na Grande
Depressão. A previsão do FMI é
uma queda de 3% na economia
global e a brasileira deve encolher
5,3%, contra os 2,2% de crescimento
que previa para 2020. Para
o próximo ano, a economia deve
mostrar sinais de recuperação,
com a brasileira avançando 2,9%.

A economista Kate Raworth, em
Economia Donut, salienta que “a
ferramenta mais poderosa em
economia não é o dinheiro, nem
mesmo a álgebra. É o lápis. Porque
com um lápis pode-se redesenhar
o mundo”. A economia
passou por diversas crises nos
últimos 100 anos e no atual momento,
sem dúvida, vive-se um
período de incertezas. Ao término
da pandemia, será necessário
redesenhar a economia, os hábitos,
as relações pessoais e profissionais
e os costumes. A crise
certamente trará mudanças estruturais
para a vida de todos.

Publicado por Silvia Bocchese de Lima

03/06/2020 às 13:31

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